Naquela Noite

 



        Naquela noite, estávamos reunidos na casa de um amigo. Era sábado e marcamos uma festa. A localização do imóvel, afastada do centro, favorecia o volume alto do som e o show de luzes. A área onde a baderna acontecia era coberta por um telhado de zinco, e acima dela, a lua ainda estava alta, brilhando ao lado das constelações que raramente apareciam nas noites claras da cidade. Mas hoje, ainda sob motivos desconhecidos, as estrelas estavam ainda mais brilhantes e a lua estava ainda mais cheia. O vento era frio e soprava folhas e lixo pelas ruas e alguns cachorros latiam para os gatos selvagens que corriam pelos muros e telhados da vizinhança.

        Mas nada disso importava da placa de zinco pra baixo. Onde estavam as pessoas que foram convidadas, que convidaram outras, que por sua vez, também chamaram mais convidados, o que acabou saindo um pouco do controle e enchendo a casa um pouco mais do que o esperado. Mas isso não pareceu problema algum para o anfitrião, afinal, quanto mais gente viesse, mais interação das portas dos quartos pra fora, e consequentemente mais bebida, e menos juízo, o que levaria a interação entre as pessoas da porta dos quartos pra dentro, cumprindo o plano inicial de termos pensado naquela festa a principio. Tirando a quantidade de gente, tudo estava indo como esperado, pessoas dançando, bebendo, beijando, fumando o que podiam e o que não deviam, nada demais para quem já frequenta esse tipo de festa a algum tempo, como quase todos que estavam ali, incluindo a mim e você.

        Já era pra lá das 4:00 da manhã e eu já estava pra lá de alterado quando vi você se afastando da multidão central e se apoiando em uma parede mais afastada, numa pequena parte do quintal que não era coberto pelo zinco. Te vi pegando um cigarro no bolso e aproveitei a deixa para ir até lá.

        - Poderia me ceder um cigarro, por gentileza, amigo?

        Chego, já estendendo a mão.

        - Claro, mas vá fumar lá do outro lado.

        Você me entrega o cigarro e ri, me oferecendo também um pequeno isqueiro rosa que havia usando para acender o seu. Rio de volta, acenando negativamente, pegando o meu próprio isqueiro, verde e um  pouco maior, dentro do bolso de minha jaqueta, que no calor da festa, era mais usada por estilo que por sua função principal de aquecer.

        - Não é um bom momento para citar Raul Seixas.

        Digo, soltando fumaça entre os dentes a cada palavra.

        - Qualé, foi a oportunidade perfeita, além do mais, você sabe que essa é minha música favorita dele.- Você ainda ria e tragava o cigarro a cada frase.

- Qualé você, olha onde a gente está.- Aponto para a multidão logo ao lado, todos pulando, girando e rebolando, cada qual com seu copo ou garrafa na mão. - Estão escutando brega funk no volume máximo.- Sorrimos juntos. – Não é lá o melhor clima pra se querer escutar rock.- E estavam mesmo escutando música no volume máximo, mas de onde estávamos, as vozes e risadas eram mais audíveis do que a caixa de som, isso era bom, pois não precisávamos gritar um no ouvido do outro para conversar.

Ficamos parados por alguns momentos, apenas olhando as outras pessoas e fumando quietos, um do lado do outro, quase que em uma meditação, o que fez o lugar parecer estar em total silêncio por alguns momentos, quando você rompeu o véu da quietude e perguntou:

- Com quantas pessoas já se agarrou hoje?- você olha pra mim de cima (aproveitando ser mais alto), como que com superioridade e da um trago no cigarro já em menos da metade.

Eu assusto e deixo a fumaça escapar em tosse, fazendo cara de indignidade:

- Como assim? O que você acha que eu sou?- Você até abre a boca para expressar sua opinião, quando o interrompo na mesma hora – Não ouse responder.- levo o indicador até sua boca e sinto seus lábios macios na minha pele. Gargalhamos juntos

- Mas, sério, já ficou com alguém essa noite?- Torna a repetir a pergunta

Voltando a virar para a multidão e observar quantas pessoas ali eu realmente já poderia ter “agarrado”, não por ser garanhão, ou por gostar dessa pessoa que estaria em meus braços por frações de instantes, mas pelo simples fato de que a ocasião me permitia e me dava esse poder. 

- Ninguém.- Respondo seca e diretamente

- Sério? Por que?- Você começa a insistir em um assunto que eu gostaria de evitar falar diretamente com sua pessoa.

- Digamos que eu só tenha olhos pra uma pessoa por vez.- Te encaro nos castanhos olhos brilhantes, que cintilavam em contraste ao show de luzes que acontecia logo à sua frente e, sem perceber, passo a língua pelos lábios, tentando umedecê-los em vão. – E você, já catou quantas novinhas nesse bailão?- A brasa do cigarro arde novamente em minha boca, enquanto meus olhos e sorrisos ardem em sarcasmo.

Foi sua vez de se assustar e tossir com a fumaça que guardava nos pulmões:

- Mas que diabos de palavreado é esse, moleque?- falou, rindo das palavras tão grosseiras virem de alguém tão “certinho” como eu.

- desculpa, eu estava tentando usar o linguajar de vocês, héteros.- O sarcasmo não abandona minha expressão.

Agora foi você quem ficou indignado, e, já exagerado como sempre, capricha nas expressões, levantando muito as sobrancelhas, arregalando os olhos e abrindo a boca de forma exagerada, além de apoiar uma das mãos no peito, fazendo questão de deixar bem claro que havia ficado muito ofendido

- Eu estou muito ofendido.-

- Responda logo, droga.- Dou um tapa em sua barriga com as costas da mão e vejo-o arfar com o golpe.

Você ri, passando a mão onde havia acertado e da dois passo para trás, apoiando as costas e o pé na parede logo atrás de nós. Nesse momento, sua fisionomia muda, a mão que estava livre é escondida no bolso, enquanto a outra leva o cigarro para um último trago, sendo jogado fora logo em seguida, ao soltar a fumaça, seu rosto se torna mais duro e o olhar parece se distanciar, fugindo do alcance de qualquer um ou qualquer coisa, sua boca se fecha em uma linha fina e treme antes de responder:

- Não, estou preferindo permanecer apenas em minha própria companhia por alguma tempo depois do desastre que foi essa minha última relação.- Você suspira longa e vagarosamente, pegando seu copo na soleira de uma janela próxima e bebendo quase metade em um único gole.

- Nossa! Foi tão mal assim?- Eu sabia de sua última parceira não era lá a melhor pessoa do mundo, mas não imaginava que era a esse ponto, afinal de contas, quando nós dois estávamos juntos, tínhamos assuntos mais interessantes do que os surtos e ataques psicóticos de sua namorada.

- Você nem tem ideia. Era pra ser só um caso, hoje eu preciso de terapia.- Você solta uma risadinha sem graça, mas o assunto não me pareceu tão engraçado assim. Pigarreio a garganta e jogo a bituca de meu cigarro no chão, tomo o copo de sua mão e bebo quase a mesma quantidade que você havia bebido.

A conversa havia tomado um rumo que não havia planejado e não estava gostando nada disso, senti a atmosfera ao nosso redor se tornar escura e pesada, o que nos forçou a permanecer em silêncio por algum tempo, mantendo apenas a respiração pesada.

Percebo que você estava olhando para cima, e, sem notar, começo a passar meu olhos por você. Seu cabelo, curto e com luzes artificiais está bagunçado, tenho vontade de passar meus dedos por entre eles e ajeita-los com um cafuné. Seus ombros estreitos, apesar de caídos, estão tensos desde que chegamos juntos na festa mais cedo, mas nada que uma massagem não resolvesse. A pele branca de seu pescoço deixa veias a mostra, que pulsam quando sua respiração é pesada, quero morde-lo naquela área. Os pelos de seus braços arrepiam com o vento frio da madrugada, meu corpo esquenta, só de pensar em aquecer o seu. Os olhos, voltados para o céu, admiram as abundantes estrelas daquela noite, anseio para que olhasse para mim da mesma forma. A boca, entreaberta, sedenta por desejos que apenas o seu eu mais íntimo tem conhecimento, clamo para que esse desejo seja de mim.

Percebo o movimento de sua cabeça, se voltando para mim, e com um movimento rápido e nada discreto, levo meus olhos também para o céu ao mesmo tempo que sinto meu rosto esquentar e se avermelhar de vergonha.

- A lua está muito linda hoje, não?-  Tento mudar o foco da embaraçosa situação.

Você volta a olhar para cima, suspirando e concordando com a cabeça –Hoje ela está mesmo esplêndida. – Suspira de novo, tomando outro gole da vodka quase pura que ainda resta em seu copo.

Esplêndida era a palavra perfeita para descreve-la naquela noite. É a primeira lua cheia do mês e ela parece estar ainda maior do que o ocasional, refletindo uma luz amarelada vibrante, deixando até mesmo aquele cantinho mais escuro da casa iluminada por uma encantadora luz dourada.

- Ela estava quase tão esplêndida assim quando você me fez aquela proposta.- Você olha sério para mim novamente, mordendo a borda do copo.

Me espanto, mesmo não sabendo do que falava, temo que esteja falando de algo comprometedor que tenha dito pra você enquanto estava bêbado em algum momento. Olho pra você, mostrando a confusão e tentando esconder o pavor.

- Não se lembra? A lua estava assim quando você me fez aquela proposta.

- De uma lua assim eu me lembro, foi no dia que nos conhecemos, naquele bar com o resto do pessoal.- Revisito as memorias daquele dia, não estavam tão claras, e alguns flash de lembranças aparecem rapidamente. – Mas acabei passando da conta aquele dia, não lembro do que você está falando.

- Foi quase antes de eu ir embora, estávamos nos despedindo e você me propos que eu lhe fizesse uma pergunta. A pergunta que eu quisesse.

- Lembro!!- Dou um pulo pra frente quando os rápidos flashes reaparecem em minha mente – Esquece aquilo, a gente estava bêbado e eu só falei aquilo pra não deixar você ir embora e conversarmos mais.- Isso era verdade. Havia conhecido você já a algum tempo, mas nunca chegamos a ter algo que possamos chamar de diálogo, mas isso mudou naquela noite, e me surpreendi quando você se mostrou uma pessoa muito além do que eu esperaria encontrar.

Logo de cara, você já se despiu de todo tipo de estereótipo que eu poderia tentar lhe encaixar, sendo alguém firme em suas palavras, sem nunca deixar com que sua voz fosse outra coisa senão tranquilizadora, seu humor ácido e sarcasmo conseguiram me fazer rir de mim mesmo e sua postura elegante combinavam com seu olhar faceiro. E então, você fez com que eu me despisse de meus próprios estereótipo, percorrendo meu passado, se preocupando com meu presente e perguntando sobre meu futuro, expondo minhas contradições e, por diversas vezes, me causando aquela estranha sensação de familiaridade, como se sua presença me energizasse de uma atmosfera confortável e me atraísse até você, não lembro de  muita coisa daquela noite, mas lembro que foi a noite em que senti que a sorte sorriu pra mim.

- Pois é. E acabou que eu não soube o que perguntar e fui embora sem nem me despedir direito.- Você se afasta da parede e se vira para mim.

- Já falei pra esquecer, era o álcool falando mais alto que a consciência.- Dou de ombros. – As vezes eu fico mais impulsivo que o normal por causa disso.- Tomo o copo de sua mão e termino de virar seu conteúdo, quase devolvendo tudo que estava em meu estômago.

- Pois estamos bêbado agora e eu quero conversar com você para não precisar ir embora.- Vejo-o se aproximar de mim e tomar o copo de minha mão, voltando a pô-lo no batente, mas sem se afastar.

- Está bem, então.- Me aproximo ainda mais, quase tocando nossos peitos e cruzo meus braços na frente de meu corpo, fechando minha expressão, deixando-a séria e dura, tentando me mostrar como uma muralha impenetrável que não seria tão facilmente afetado por você, apesar de já ter me afetado no primeiro dia que conversamos. – Faça-me a melhor pergunta que puder.

Ficamos algum tempo assim, nos encarando, você repetindo minha expressão enquanto pensa e eu seguindo imóvel, tentando permanecer na mesma pose de durão (que até você sabia que era encenação pura), me preparando para o pior. Sua boca treme um pouco antes de falar, o que mostra um pouco de insegurança em suas palavras

-Por que? – Você lança, sem mudar seu semblante e abaixa a cabeça, aproximando nossos rostos ainda mais e consigo sentir sua respiração pesada em meu nariz. Apenas seus olhos se transformam, voltando a tomar aquele mesmo brilho faceiro que tanto me encanta.

E outra vez você me surpreende, me arrebatando com a mesma sensação de familiaridade, apesar de toda estranheza do momento, e envolto pela mesma curiosidade, me lanço em um turbilhão de pensamentos e suposições que fazem minha cabeça revirar

“Porque te quero.” Penso comigo mesmo. “Não porque te quero, porque te desejo.” Arde meu coração, em suplica por você.

- E por que não?- Respondo baixo, como que suspirando, tocando levemente seu braço, também cruzado, com a ponta de meus dedos.

- Você tem razão. Por que não?

Era tudo o que precisava ser dito.

Ali, naquela noite, a lua e as estrelas foram testemunhas desse meu desejo e alcancei aquilo que tanto almejava já a algum tempo. Nossos olhos se fecham e o infinito abismo de poucos centímetros entre nossos lábios desaparece. Sinto seu hálito forte como fogo invadindo minha garganta, e minha língua, à procura da sua, dança em sua boca.

Sinto suas mão segurarem firme em meus ombros e me porem contra a parede, solto um leve gemido ao sentir minhas costas baterem contra o muro e uma de suas pernas tocarem minha coxa. Suas mão se movem e descem pelo meu peito, continuando caminho até pararem em minha cintura, onde seus dedos compridos se firmam e puxam meu corpo conta o seu. Sinto seu coração batendo contra o meu e, por alguns instantes, eles pulsam juntos.

Naquela noite, naquele exato instante, fomos levados ao céu. A lua e as estrelas, eu e você éramos finalmente um só, resumidos a um único momento, o momento em que a sorte novamente sorriu, não só para mim, mas para nós dois.

Mas, com a chegada do sol, a lua e as estrelas têm de se esconder, e assim foi feito, e com elas, também se foi nosso momento de êxtase. Com a chama se esvaindo, senti seu rosto se afastar do meu e, ao abrir meus olhos, pude te contemplar. Seus olhos, ainda refletindo toda sua elegância, marcavam todo o sabor dessa nossa nova memória, que agora levaríamos para o resto de nossas vidas e eu estava contente por isso. Suspiramos juntos, enquanto nos admirávamos, da mesma forma como admirávamos a lua antes de tudo acontecer.

Só depois percebo que o silêncio do lugar não era apenas ilusão minha, mas o som realmente havia sido desligado e boa parte das pessoas já tinham ido embora. Mordo o lábio inferior e colo nossos rostos uma última vez antes de sair de onde estávamos.

Ao entrar na área principal, vejo uma amiga sair de detrás de uma porta, chamando meu nome.

- Onde você estava? Ainda vamos dividir o Uber ou quer voltar pra casa de pé?- Ela estava claramente muito bêbada e descabelada, o que mostrava que a noite não havia sido boa apenas para mim.

- Vamos,- estendo uma mão para ela se apoiar – Eu chamo o carro pra gente.

Antes de sair, olho para trás uma última vez e vejo-o ainda me olhando, acendendo seu primeiro cigarro do dia. O anfitrião se despede e fecha o portão nas nossas costas. Já no carro a caminho de casa, pego meu celular e lhe mando uma mensagem:

“Muito obrigado pela noite, foi mágico. Espero que seja só a primeira de outras que virão.”

Ela é enviada, mas como não foi recebida instantaneamente,  guardo o aparelho novamente em meu bolso e apenas aguardo a sua resposta. Chegando em casa, vou direto pra cama e me jogo sobre o colchão, sem nem mesmo tirar a roupa suja de bebida e fedendo a fumaça. Com o corpo na mesma posição que havia dormido, acordo, já puxando o celular da cabeceira. Ele marca exatamente 18:59 e uma notificação sua. Abro. No lugar onde deveria estar sua foto, apenas um avatar cinzento e vazio, seguido da sua resposta:

“Essa noite foi um erro, não era para aquilo ter acontecido. Espero que me perdoe.”

Meu coração se parte. Naquela noite, a lua não nasceu e as estrelas foram ofuscadas pelas duras luzes amarelas dos postes da cidade.


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