Filho de Sol e Vingança

 


A história de Kàlio começa antes mesmo da humanidade saber da existência dos deuses. Héstia, deusa grega do lar, da pureza e do fogo, uma dos doze habitantes do Monte Olimpo, descia à Terra todos os dias, antes do nascer do sol e escalava as montanhas de Rila, segurando uma faísca do Fogo Sagrado do Monte Olimpo para iluminar seu caminho, até chegar na calma nascente do grandioso Rio Maritsa, onde se banhava e lavava seus sedosos cabelos, tão ruivos quanto as chamas da qual era matriarca. Agradava-lhe a ideia de que até mesmo um rio tão feroz e poderoso era gentil e calmo ao nascer. E ali permanecia, deitada sobre as rochas úmidas, com seu corpo molhado totalmente a disposição dos últimos raios prateados da lua, só se levantando quando a luz do sol nascente começasse a aquecer seu corpo.

Apolo, aquele que carrega o Sol em sua carruagem feita de luz e poesias, depois de muito assistir os repousos delirantes de Héstia, apaixona-se profundamente, mas não podendo deixar seu posto como aquele que ergue o dia,  passa a dedicar os primeiros raios de amanhecer à sua amada, que os aceita feliz, sem nem mesmo saber que eram um presente. Passado o tempo, mesmo ciente de suas frustrações amorosas e de seu desentendimento com o cupido, ele planeja o dia em que finalmente encontraria sua amada. Chegado o momento, o deus abandona seu posto mais cedo sem que ninguém percebesse e sobe as montanhas de Rila no escuro, a procura de Héstia, para surpreende-la com uma coroa de raios solares e canções que compôs em sua lira. Quando finalmente a encontrou, nua, molhada e indefesa, ainda de longe e escondido atrás das arvores, chamou-a por seu nome, esta se espantou e começou a gritar assustada, se levantando e cobrindo-se com as mãos:

- QUEM ESTÁ AÍ?

O deus sai de seu esconderijo, aproximando-se dela e trazendo em mãos os presentes, ele se apresentou:

- Sou eu, minha graciosa Héstia, provedora dos lares, o Luminoso Apolo. Trago para ti luz, arte e amor.

Sua saudação não compensou o atrevimento do deus de procura-la em tal momento de privacidade. Héstia, indignada, irada e aterrorizada, tentou fugir de volta para o Monte Olimpo, mas sem o sol ou suas chamas para iluminar seus pés, não foi rápida o suficiente para escapar do ataque de seu ameaçador, que usou a coroa como algemas e prendeu a deusa, levando-a para uma gruta ali perto e violentando-a.

Naquela manhã o Sol não nasceu.

Para evitar que Héstia fugisse, Apolo criou a Eklypsye, reencarnação da Píton que o mesmo matara outrora e a pos para guardar a entrada caverna.

Por eras Apolo a manteve escondida e prisioneira, usando-a para suprir suas frustrações amorosas do passado. Certa manhã, definhando sozinha no fundo da gruta enquanto seu aprisionador cumpria seus deveres, Héstia, sentindo estar ainda mais cansada e pesada, percebeu-se grávida das agressões. Apavorada com o que lhe poderia ser feito por parte de seu agressor, reuniu o ultimo calor de chamas que ainda guardava em seu coração e derreteu as correntes que a prendiam, consequentemente queimando seus pulsos e pescoço, cegou momentaneamente a imensa serpente Eklypsye, apenas o suficiênte para se esgueirar por uma fresta entre a pedra que tapava a saída de seu cativeiro e a parede da gruta. Correndo montanha abaixo, tropeçando entre arvores e pedras, buscava encontrar novamente a entrada para o Monte Olimpo para rogar amparo ao seu irmão Zeus, mas, mais uma vez, seus esforços não foram o suficiente. Apolo já havia voltado para o esconderijo e notado sua ausência alcançando-a em sua carruagem. Novamente acorrentada e amordaçada, foi jogada no banco do transporte e levada imediatamente para o céu, onde receberia os castigos de um deus irado em um lugar onde ninguém poderia escutar seus clamores por piedade.

Refletindo a fúria de Apolo, o Sol ardeu ainda mais intensamente, fazendo com que os mares fervessem, as florestas queimassem e as montanhas derretessem, e refletindo a dor de Héstia, o Sol sangrou. Toda a confusão celeste chamou a atenção dos deuses, principalmente de Zeus, que foi em busca de Apolo para saber o que acontecia. Estranhou ao ver sua carruagem parada ao relento, então aproximou-se cuidadosamente e flagrou o ocorrido. Héstia apavorada, chorando lágrimas de fogo e sangrando entre as pernas e Apolo deitado sobre sua irmã com queimaduras pelo corpo e o sangue em sua virilha.

Zeus, assombrado e em repugnância com a cena, leva ambos ao seu palácio, pondo-os frente a frente de seu trono. Pediu que chamassem as ninfas dos vales, as Napéias, e que essas cuidassem da fragilizada deusa, dando-a tudo que necessitasse e pedisse e ela, temendo a reação do irmão caso descobrisse da gestação, planejava esconder-la até o parto e criar a criança nos vales, junto das ninfas.

Enquanto ao deus, Zeus o amaldiçoou a, uma vez a cada Era, ser transformado em mortal e obrigado a enfrentar a vigilante de sua prisioneira e sua própria criação, a implacável serpente Eklypsye, batalha essa que sempre estaria destinada à derrota do violentador e terminaria com o deus do Sol sendo devorado e apagado, para que no outro dia o mesmo acordasse para cumprir com suas obrigações enquanto espera a próxima batalha.

Héstia, vivendo com as ninfas, fez de tudo para esconder sua gravidez, mas durante uma das visitas de Zeus, ele percebeu que a sua querida irmã estava usando roupas mais folgadas que as de costume. Não adiantou todas as desculpas dadas por Héstia ou pelas ninfas, ele acabou por descobrir do bebê. Revoltado pela traição, esbravejou aos céus, explodindo-os com seus raios mais poderosos:

- COMO VOCÊ, HÉSTIA, DEUSA DA PUREZA E DA VIRGINDADE, PODE QUERER SE DAR AO LUXO DE TER UM FILHO!?

Levou-a de volta ao Olimpo imediatamente, tendo-a a todo momento sob sua vigia e controle.

- Assim que esta criança nascer, ela será entregue ao pai, e este será obrigado a dá-la como alimento para a besta que ele mesmo criara. Só assim esta história terá um fim e ninguém nunca tornará a citar nada disso em nenhuma canção, conto ou história.

Impôs o grande Rei do Olimpo. Héstia, apavorada pela condenação e temendo pelo próprio filho, usou de seus poderes recuperados para apagar o Fogo Sagrado do Olimpo, o que desordenou a todos os moradores do Monte e distraindo, principalmente, a Zeus. Quando tudo novamente se pós em seu lugar, notaram que Héstia havia novamente fugido para a Terra.

Zeus, furioso com a audácia, se vinga da irmã, a transformando em uma mortal e a condenando a um parto mais doloroso do que as décadas que havia passado aprisionada.

Amedrontada pela condenação e pelo pavor de reviver tudo o que já havia acontecido a ela, Héstia, ao sentir os primeiro sinais de que o bebê estava pronto para sair, se apressou e tratou de subir as montanhas de Rila no escuro da noite, já que não podia mais levar o fogo em suas mãos, e quando finalmente achou a nascente onde tudo havia começado, subiu no alto da pedra mais alta e, de lá, se atirou contra as águas abaixo, dando fim às suas dores e à sua história.

Mas a criança, mesmo tendo a mãe transformada em mortal, ainda era filha de um deus pelo sangue paterno, o que garantiu sua sobrevivência ainda no útero. Viva, mas ainda presa dentro do corpo inanimado da mãe, teve fome, então fez de seu órgão gerador o seu primeiro alimento. Ao ingerir o ventre de sua progenitora, o bebê se desenvolve em questão de horas, tornando-se um jovem adulto, livrando-se do aprisionamento do corpo de sua mãe. Além de amadurecimento, Kàlio também absorveu toda a história e vivência de Héstia, o que o tornou amargurado consigo mesmo por descobrir sua origem e jurou vingança àqueles que causaram tanto terror à sua mãe e, consequentemente, à ele mesmo.


Comentários

  1. Cada dia mais apaixonada por suas escritas... Impressionante como consigo embarcar em cada palavra ��

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  2. A escrita é maravilhosa ������������

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